25.2.06
O Difícil Diálogo de Civilizações
Esperançosamente, tenho deixado neste fórum alguns contributos para uma tentativa de compreensão dos problemas das relações entre Comunidades; problemas, digamo-lo sem rodeios, vividos já hoje, aqui entre nós, na nossa outrora doce e civilizada Europa, cada vez mais, no entanto, a caminho de deixar de o ser, sobretudo se, nós outros, cidadãos europeus do século XXI, continuarmos apáticos, inibidos ou estonteados com os fenómenos que presenciamos, sem nos esforçarmos por os compreender e, em consequência, sem capacidade para posteriormente os tentarmos resolver.
A questão é colocada assim mesmo, porque podem muito bem estes problemas não ter solução consensual, ou apenas solução, sem mais, tout court.
Qualquer observador consciente admitirá que não tenham solução fácil, ainda que todos nos empenhássemos nela, muito menos quando tanta gente deles se alheia.
Só por mero acaso, alguém consegue resolver um problema que previamente não compreendeu. Antes ainda da tentativa de resolução do problema, é preciso que este tenha sido correctamente identificado e adequadamente formulado.
Se nem sequer se reconhece o fenómeno que se tem diante dos olhos como um problema, nunca ele será correctamente identificado, não se formulará o seu real enquadramento e naturalmente jamais ele será resolvido.
Isto na ordem natural das coisas, não contando com a intervenção do Acaso ou da Providência, sempre admissível, obviamente, mas com a qual não é aconselhável contar, na procura de soluções para os nossos problemas quotidianos.
Convém além do mais ter sempre presente que, em qualquer circunstância, não é por se ignorar o mal, que ele desaparece ou se transforma em qualquer coisa de bom.
A isto julgo poder chamar-se o exercício do velho bom senso, aquela espécie de bem ou dom que René Descartes reputava ser o mais perfeitamente distribuído do mundo, aquele que lhe parecia ter sido o bem mais equitativamente dispensado pelo Criador (Descartes era simultaneamente um pensador, filósofo, matemático, sábio e crente) ao Homem, visto que nunca ele havia conhecido alguém que achasse tê-lo recebido em quantidade insuficiente, que desejasse possuí-lo em maior abundância.
De onde, concluia Descartes, que tal situação resultava do facto de ter havido uma inequívoca distribuição igualitária desse utilíssimo bem, derradeira prova da infinita generosidade e equanimidade do Criador.
Bem nos poderíamos inspirar nesta última referência, para procurarmos uma forma de convivência mais amigável, nas nossas sociedades contemporâneas do Ocidente, de há uns anos para cá, demasiado obcecadas com a maximização dos lucros das Empresas, ao mesmo tempo que desatentas a factores que contribuem gravemente para a sua desagregação global.
De nada servirá a grande capacidade produtiva de bens e serviços da Economia ocidental, quando somente uma pequena parcela da Comunidade dela puder usufruir, ainda pior se com este facto, se observar, em concomitância, um crescente desinteresse por ideais cívicos e espirituais, que estiveram na base dessa actual superioridade económica.
Deveríamos pensar mais nisto, em lugar de julgarmos permanentemente assegurada esta nossa actual superioridade, sobretudo quando, apesar dela, se gera uma tão difusa frustração na maioria da população pela enorme desigualdade na distribuição da riqueza comummente criada.
Neste habitat de tão gritantes desníveis sociais, torna-se difícil fazer vingar sentimentos de solidariedade e sem estes não há verdadeiras Comunidades, Países ou Nações, sobretudo quando delas se extirpou a base espiritual a partir da qual se alimentava a comunhão de ideais.
Sem aquela base espiritual e sem ideais compartilhados como se sustentam as actuais Comunidades ocidentais ?
Será o presente relativo conforto material vivido, em particular, nas sociedades euro-americanas, assente na obsessão consumista, habilmente conduzida pela panóplia de recursos mediáticos postos ao serviço das grandes Empresas, gravemente esquecidas da sua função social, suporte bastante para garantir, no futuro, a actual superioridade económica e militar do Ocidente herdeiro da civilização de matriz greco-romana-judaico-cristã ?
No passado, tivemos exemplos de Civilizações florescentes que pereceram ante a investida de outras que eram tecnica e culturalmente menos dotadas, vulgarmente até apelidadas de bárbaras.
Teremos aprendido alguma coisa com esses exemplos ?
AV_Lisboa, 25 de Fevereiro de 2006
A questão é colocada assim mesmo, porque podem muito bem estes problemas não ter solução consensual, ou apenas solução, sem mais, tout court.
Qualquer observador consciente admitirá que não tenham solução fácil, ainda que todos nos empenhássemos nela, muito menos quando tanta gente deles se alheia.
Só por mero acaso, alguém consegue resolver um problema que previamente não compreendeu. Antes ainda da tentativa de resolução do problema, é preciso que este tenha sido correctamente identificado e adequadamente formulado.
Se nem sequer se reconhece o fenómeno que se tem diante dos olhos como um problema, nunca ele será correctamente identificado, não se formulará o seu real enquadramento e naturalmente jamais ele será resolvido.
Isto na ordem natural das coisas, não contando com a intervenção do Acaso ou da Providência, sempre admissível, obviamente, mas com a qual não é aconselhável contar, na procura de soluções para os nossos problemas quotidianos.
Convém além do mais ter sempre presente que, em qualquer circunstância, não é por se ignorar o mal, que ele desaparece ou se transforma em qualquer coisa de bom.
A isto julgo poder chamar-se o exercício do velho bom senso, aquela espécie de bem ou dom que René Descartes reputava ser o mais perfeitamente distribuído do mundo, aquele que lhe parecia ter sido o bem mais equitativamente dispensado pelo Criador (Descartes era simultaneamente um pensador, filósofo, matemático, sábio e crente) ao Homem, visto que nunca ele havia conhecido alguém que achasse tê-lo recebido em quantidade insuficiente, que desejasse possuí-lo em maior abundância.
De onde, concluia Descartes, que tal situação resultava do facto de ter havido uma inequívoca distribuição igualitária desse utilíssimo bem, derradeira prova da infinita generosidade e equanimidade do Criador.
Bem nos poderíamos inspirar nesta última referência, para procurarmos uma forma de convivência mais amigável, nas nossas sociedades contemporâneas do Ocidente, de há uns anos para cá, demasiado obcecadas com a maximização dos lucros das Empresas, ao mesmo tempo que desatentas a factores que contribuem gravemente para a sua desagregação global.
De nada servirá a grande capacidade produtiva de bens e serviços da Economia ocidental, quando somente uma pequena parcela da Comunidade dela puder usufruir, ainda pior se com este facto, se observar, em concomitância, um crescente desinteresse por ideais cívicos e espirituais, que estiveram na base dessa actual superioridade económica.
Deveríamos pensar mais nisto, em lugar de julgarmos permanentemente assegurada esta nossa actual superioridade, sobretudo quando, apesar dela, se gera uma tão difusa frustração na maioria da população pela enorme desigualdade na distribuição da riqueza comummente criada.
Neste habitat de tão gritantes desníveis sociais, torna-se difícil fazer vingar sentimentos de solidariedade e sem estes não há verdadeiras Comunidades, Países ou Nações, sobretudo quando delas se extirpou a base espiritual a partir da qual se alimentava a comunhão de ideais.
Sem aquela base espiritual e sem ideais compartilhados como se sustentam as actuais Comunidades ocidentais ?
Será o presente relativo conforto material vivido, em particular, nas sociedades euro-americanas, assente na obsessão consumista, habilmente conduzida pela panóplia de recursos mediáticos postos ao serviço das grandes Empresas, gravemente esquecidas da sua função social, suporte bastante para garantir, no futuro, a actual superioridade económica e militar do Ocidente herdeiro da civilização de matriz greco-romana-judaico-cristã ?
No passado, tivemos exemplos de Civilizações florescentes que pereceram ante a investida de outras que eram tecnica e culturalmente menos dotadas, vulgarmente até apelidadas de bárbaras.
Teremos aprendido alguma coisa com esses exemplos ?
AV_Lisboa, 25 de Fevereiro de 2006
10.2.06
As Caricaturas, o Islão e Nós
E pronto, aí está, no sítio do Jornal de Bruxelas : (http://www.brusselsjournal.com/node/698 ), a causa de tamanho furor islâmico.
Afinal, uns simples bonecos, toscos desenhos, apenas esboçados, nem sequer ousados na transmissão da sua mensagem, são apontados como o detonador dessa estupenda manifestação de ódio que temos observado, pelo recato da televisão, por esse mundo muçulmano fora, de há uma semana para cá e que promete continuar, apesar dos repetidos apelos ocidentais de apaziguamento da fúria islâmica.
Muito mais e muito pior tem sido feito com os símbolos do Cristianismo e da hierarquia católica. A diferença toda está na reacção que essas supostas ofensas provocam. E esta, naturalmente, deriva do contexto cultural e civilizacional em que estes episódios acontecem, pese a forçada tentativa de muita gente, tomada de súbita cegueira, em querer negar a realidade.
O resto é falta de discernimento e/ou medo, demasiado medo, sobretudo, de assumirmos as nossas convicções, se as temos. Mas, por isso mesmo, os nossos contendores ou adversários, se não já jurados inimigos, vão-nos perdendo, cada vez mais, o respeito. Dir-se-á, pelo nosso estranho comportamento, que só nos preocupamos com assuntos que envolvam valores em numerário, com o prosaico vil metal... E, quando estes não estão em disputa, deixamos andar...
E assim, de cedência em cedência, de cobardia em cobardia, começamos a trilhar uma via inexoravelmente ruinosa, tal como sucedeu, primeiro na Europa e depois no vasto mundo, quando uns simpáticos cavalheiros, representantes das democracias europeias, conferenciavam em Munique, em Setembro de 1938, insistindo em tratar o Sr. Adolfo com todas as mesuras e compreensões do mundo, recusando-se obstinadamente, por inconsciência ou por cobardia, a perceber a natureza do seu interlocutor.
Um deles, o Sr. Neville Chambarlain, um dos mais infelizes apaziguadores da História, Primeiro-Ministro britânico, então em exercício, ao regressar a Londres, garantia, ufano, aos jornalistas e repórteres que o aguardavam, que trazia consigo a «Paz para o Nosso Tempo»/Peace for Our Time» e sorria para todo o lado, na sua candura inconsciente, como hoje ainda se pode ver nas imagens de arquivo que periodicamente passam na TV.
Depois, o que veio a seguir foi trágico, horrivelmente desastroso, sabêmo-lo à custa de milhões de sacrificados, inocentes na tragédia, mas graças ao denodado sacrifício dos quais foi possível debelar a monstruosidade Nazi. Convém meditar nisto, quando voltamos a ouvir com demasiada insistência e contra toda a prometida eficácia, nunca comprovada, os mesmos apelos de imaginado poder apaziguador.
Aprendemos nós com o erro trágico então cometido ou estamos dispostos a repeti-lo ?
Como queremos viver : de acordo com os nossos valores, se os prezamos, ou com os do Islão, se tanto nos faz ?
E a União Europeia, como se comportou esta distinta e púdica Dama em toda esta semana de crise : com sentido de solidariedade para com os países membros atingidos pela onda de ódio e de violência, grandemente orquestrada pelas autoridades políticas e religiosas muçulmanas ou sem uma posição comum sequer, atarantada, temerosa e hipócrita ?
Para isto, no entanto, para fazer esta triste figura, não precisamos de uma burocracia tão numerosa em Bruxelas e em Estrasburgo. Basta dispormos aí de uns meros encarregados de negócios, com um corpo mínimo de funcionários. Sai mais barato ao contribuinte, como eles próprios, os nossos Eurocratas, os líquidos beneficiários dessa enfatuada burocracia, costumam dizer, a propósito de tudo e de nada.
A discussão, que, entretanto, se levantou, a meu ver, justifica-se mais pelas atitudes dos europeus e dos ocidentais, em geral, do que pelo comportamento do Islão enfurecido.
Ainda há poucos anos saídos da cómoda guerra-fria, com os campos sempre bem delimitados, nas polémicas que ocorriam, eis-nos, de novo, confrontados com opções de alinhamento.
Alguns de entre nós depressa descobrem a sua pertença : colocam-se ao lado dos que estão contra o grande satã americano e seus aliados, por tradição, a União Europeia. Nisto, não fazem mais do que reeditar a velha regra maoísta, segundo a qual «o inimigo do meu inimigo, meu amigo é», ao que parece, também muito do agrado do antigo presidente americano, Richard Nixon, que a terá posto em prática na sua célebre visita oficial à China, em Fevereiro de 1972.
Aqueles que têm uma cultura de tipo ocidental, sejam crentes, agnósticos ou ateus, mas que aqui vivem e aqui usufruem, em maior ou menor grau, os benefícios dela, devem aproveitar este período, ainda que de aceso conflito, para reflectirem na sua atitude mental e comportamental, para seu bem imediato e, no fim, até para o bem daqueles que nestes dias vociferam por todos esses países, do próximo e do mais longínquo oriente, onde há muitos séculos floresceram civilizações.
Sobre este assunto ainda, que dizer do comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros Português, emitido na passada 3ª feira ?
Aqui o caso é ainda mais lamentável, pelo nome do titular do cargo, Freitas do Amaral, Professor Universitário reputado, homem de sólida cultura humanística, de larga e bem sucedida carreira política, que até já foi Presidente da Assembleia Geral da ONU.
Como se pode compreender um texto tão limitado, tão temeroso e tão hipócrita, que apenas aconselha respeito pelos símbolos do Islão e do Cristianismo, sem uma única palavra para condenar os tumultos e os desmandos das turbas islâmicas contra embaixadas de países, nossos parceiros na UE, num exercício de inqualificável cobardia política, moral e cultural, de que dificilmente imaginaríamos capaz tão ilustre autor.
Confesso que me custa usar estes termos com alguém de quem tenho inequívoca estima intelectual. Li, com bastante agrado, alguns dos livros que Freitas do Amaral tem publicado, em particular, os de reflexão política e histórica, entre eles, o da biografia do nosso primeiro Rei, D. Afonso Henriques, figura inexplicavelmente esquecida pelos nossos mais destacados Historiadores, injustamente apreciada por alguns nossos maiores vultos culturais, como Oliveira Martins, que classificou com grande rudeza o nosso bravo rei-guerreiro, afinal, muito mais do que isso, avisado político, nos seus múltiplos e, sobretudo para nós, seus herdeiros, fundamentais objectivos, como Freitas do Amaral bem demonstrou na sua excelente biografia de D. Afonso Henriques.
Quando alguém que estimamos nos desilude, dói-nos sempre mais a desilusão.
Além de tudo, o texto emitido até me parece mal elaborado, facto incompreensível, vindo de alguém que escreve, por regra, com muito acerto, no estilo e na lógica com que constrói a sua argumentação.
Há qualquer coisa perversa por detrás da declaração de Freitas do Amaral, sobre o caso das Caricaturas de Mafamede ou Mafoma, termos vernáculos, muito mais antigos e legítimos que Maomé, de importação francesa posterior, usados com abundância por Camões, nos Lusíadas, livro, aliás, em que este Profeta do Islão é tratado com alguma acrimónia, típica da animosidade religiosa e cultural daqueles tempos, séculos xv e xvi, da expansão europeia pelo mundo, que julgávamos definitivamente ultrapassada.
Esperemos que estes novos fanáticos islamitas não se lembrem de desenterrar mais este machado de guerra, indo catar nas obras portuguesas quinhentistas termos azedos com que a eles os nossos se referiam.
Poderá julgar-se supérfluo, mas aproveito mais uma vez o ensejo para acrescentar que nada me move contra o Islão, cuja antiga civilização aprecio, designadamente, nos seus aspectos arquitectónicos, nas inovações técnicas agrícolas que nos legaram, em particular, a nós portugueses, na culinária, no canto e até no idioma, em que se encontram incorporadas centenas de termos, havendo enriquecido com isso o nosso léxico e marcado definitivamente a nossa cultura, factos que não devemos renegar, nem tampouco menosprezar.
Creio que qualquer pessoa medianamente culta fará, sem relutância, este juízo. Mas isto não nos deve impedir de verificar que, no presente, a cultura islâmica dominante contém aspectos muito desagradáveis, no capítulo do tratamento das mulheres, nas relações do poder civil com o religioso, no Islão em profunda promiscuidade, na postura cultural, sobretudo, de perigoso, nocivo fechamento sobre si mesma, tudo isto produzindo um ambiente que se torna, para nós, europeus do século xxi, de convivência extraordinariamente penosa, se não mesmo impossível.
E o mais dramático é que esta difícil convivência só poderá melhorar a partir da evolução cultural que o Islão, ele mesmo, consiga fazer. O esforço principal terá de vir inevitalvelmente do seu seio, com modesto contributo da nossa parte, admita-mo-lo, com realismo.
No entanto, não haja ilusões, só teremos aqui um papel positivo, se mostrarmos a estes exaltados islamitas firmeza nas nossas convicções, rejeitando o seu actual comportamento irracional. Nada ganharemos, nem com isso os ajudaremos, desculpando ou banalizando as agressões, os insultos e as ameaças que continuamente nos dirigem, mesmo que na sua origem se achem algumas acções de mau gosto, despropositadas ou de ofensa gratuita cometidas por cidadãos europeus pouco prudentes.
Será isto coisa assim tão difícil de entender, já não digo para os islamitas, subjugados pela emoção e pela acintosa manipulação dos seus líderes, mas para os nossos despreocupados concidadãos europeus ?
Aguardemos com a paciência cristamente possível o desenvolvimento da presente crise.
AV_Lisboa, 10 de Fevereiro de 2006
PS : As opiniões aqui expendidas baseiam-se, obviamente, na presunção de que vivemos numa Comunidade que respeita a liberdade de expressão, exercida de forma responsável, sem dúvida, mas exercida sempre, em todas as circunstâncias, pese o humor ou a sensibilidade de qualquer autoridade civil ou religiosa em exercício ou a constituir.
Afinal, uns simples bonecos, toscos desenhos, apenas esboçados, nem sequer ousados na transmissão da sua mensagem, são apontados como o detonador dessa estupenda manifestação de ódio que temos observado, pelo recato da televisão, por esse mundo muçulmano fora, de há uma semana para cá e que promete continuar, apesar dos repetidos apelos ocidentais de apaziguamento da fúria islâmica.
Muito mais e muito pior tem sido feito com os símbolos do Cristianismo e da hierarquia católica. A diferença toda está na reacção que essas supostas ofensas provocam. E esta, naturalmente, deriva do contexto cultural e civilizacional em que estes episódios acontecem, pese a forçada tentativa de muita gente, tomada de súbita cegueira, em querer negar a realidade.
O resto é falta de discernimento e/ou medo, demasiado medo, sobretudo, de assumirmos as nossas convicções, se as temos. Mas, por isso mesmo, os nossos contendores ou adversários, se não já jurados inimigos, vão-nos perdendo, cada vez mais, o respeito. Dir-se-á, pelo nosso estranho comportamento, que só nos preocupamos com assuntos que envolvam valores em numerário, com o prosaico vil metal... E, quando estes não estão em disputa, deixamos andar...
E assim, de cedência em cedência, de cobardia em cobardia, começamos a trilhar uma via inexoravelmente ruinosa, tal como sucedeu, primeiro na Europa e depois no vasto mundo, quando uns simpáticos cavalheiros, representantes das democracias europeias, conferenciavam em Munique, em Setembro de 1938, insistindo em tratar o Sr. Adolfo com todas as mesuras e compreensões do mundo, recusando-se obstinadamente, por inconsciência ou por cobardia, a perceber a natureza do seu interlocutor.
Um deles, o Sr. Neville Chambarlain, um dos mais infelizes apaziguadores da História, Primeiro-Ministro britânico, então em exercício, ao regressar a Londres, garantia, ufano, aos jornalistas e repórteres que o aguardavam, que trazia consigo a «Paz para o Nosso Tempo»/Peace for Our Time» e sorria para todo o lado, na sua candura inconsciente, como hoje ainda se pode ver nas imagens de arquivo que periodicamente passam na TV.
Depois, o que veio a seguir foi trágico, horrivelmente desastroso, sabêmo-lo à custa de milhões de sacrificados, inocentes na tragédia, mas graças ao denodado sacrifício dos quais foi possível debelar a monstruosidade Nazi. Convém meditar nisto, quando voltamos a ouvir com demasiada insistência e contra toda a prometida eficácia, nunca comprovada, os mesmos apelos de imaginado poder apaziguador.
Aprendemos nós com o erro trágico então cometido ou estamos dispostos a repeti-lo ?
Como queremos viver : de acordo com os nossos valores, se os prezamos, ou com os do Islão, se tanto nos faz ?
E a União Europeia, como se comportou esta distinta e púdica Dama em toda esta semana de crise : com sentido de solidariedade para com os países membros atingidos pela onda de ódio e de violência, grandemente orquestrada pelas autoridades políticas e religiosas muçulmanas ou sem uma posição comum sequer, atarantada, temerosa e hipócrita ?
Para isto, no entanto, para fazer esta triste figura, não precisamos de uma burocracia tão numerosa em Bruxelas e em Estrasburgo. Basta dispormos aí de uns meros encarregados de negócios, com um corpo mínimo de funcionários. Sai mais barato ao contribuinte, como eles próprios, os nossos Eurocratas, os líquidos beneficiários dessa enfatuada burocracia, costumam dizer, a propósito de tudo e de nada.
A discussão, que, entretanto, se levantou, a meu ver, justifica-se mais pelas atitudes dos europeus e dos ocidentais, em geral, do que pelo comportamento do Islão enfurecido.
Ainda há poucos anos saídos da cómoda guerra-fria, com os campos sempre bem delimitados, nas polémicas que ocorriam, eis-nos, de novo, confrontados com opções de alinhamento.
Alguns de entre nós depressa descobrem a sua pertença : colocam-se ao lado dos que estão contra o grande satã americano e seus aliados, por tradição, a União Europeia. Nisto, não fazem mais do que reeditar a velha regra maoísta, segundo a qual «o inimigo do meu inimigo, meu amigo é», ao que parece, também muito do agrado do antigo presidente americano, Richard Nixon, que a terá posto em prática na sua célebre visita oficial à China, em Fevereiro de 1972.
Aqueles que têm uma cultura de tipo ocidental, sejam crentes, agnósticos ou ateus, mas que aqui vivem e aqui usufruem, em maior ou menor grau, os benefícios dela, devem aproveitar este período, ainda que de aceso conflito, para reflectirem na sua atitude mental e comportamental, para seu bem imediato e, no fim, até para o bem daqueles que nestes dias vociferam por todos esses países, do próximo e do mais longínquo oriente, onde há muitos séculos floresceram civilizações.
Sobre este assunto ainda, que dizer do comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros Português, emitido na passada 3ª feira ?
Aqui o caso é ainda mais lamentável, pelo nome do titular do cargo, Freitas do Amaral, Professor Universitário reputado, homem de sólida cultura humanística, de larga e bem sucedida carreira política, que até já foi Presidente da Assembleia Geral da ONU.
Como se pode compreender um texto tão limitado, tão temeroso e tão hipócrita, que apenas aconselha respeito pelos símbolos do Islão e do Cristianismo, sem uma única palavra para condenar os tumultos e os desmandos das turbas islâmicas contra embaixadas de países, nossos parceiros na UE, num exercício de inqualificável cobardia política, moral e cultural, de que dificilmente imaginaríamos capaz tão ilustre autor.
Confesso que me custa usar estes termos com alguém de quem tenho inequívoca estima intelectual. Li, com bastante agrado, alguns dos livros que Freitas do Amaral tem publicado, em particular, os de reflexão política e histórica, entre eles, o da biografia do nosso primeiro Rei, D. Afonso Henriques, figura inexplicavelmente esquecida pelos nossos mais destacados Historiadores, injustamente apreciada por alguns nossos maiores vultos culturais, como Oliveira Martins, que classificou com grande rudeza o nosso bravo rei-guerreiro, afinal, muito mais do que isso, avisado político, nos seus múltiplos e, sobretudo para nós, seus herdeiros, fundamentais objectivos, como Freitas do Amaral bem demonstrou na sua excelente biografia de D. Afonso Henriques.
Quando alguém que estimamos nos desilude, dói-nos sempre mais a desilusão.
Além de tudo, o texto emitido até me parece mal elaborado, facto incompreensível, vindo de alguém que escreve, por regra, com muito acerto, no estilo e na lógica com que constrói a sua argumentação.
Há qualquer coisa perversa por detrás da declaração de Freitas do Amaral, sobre o caso das Caricaturas de Mafamede ou Mafoma, termos vernáculos, muito mais antigos e legítimos que Maomé, de importação francesa posterior, usados com abundância por Camões, nos Lusíadas, livro, aliás, em que este Profeta do Islão é tratado com alguma acrimónia, típica da animosidade religiosa e cultural daqueles tempos, séculos xv e xvi, da expansão europeia pelo mundo, que julgávamos definitivamente ultrapassada.
Esperemos que estes novos fanáticos islamitas não se lembrem de desenterrar mais este machado de guerra, indo catar nas obras portuguesas quinhentistas termos azedos com que a eles os nossos se referiam.
Poderá julgar-se supérfluo, mas aproveito mais uma vez o ensejo para acrescentar que nada me move contra o Islão, cuja antiga civilização aprecio, designadamente, nos seus aspectos arquitectónicos, nas inovações técnicas agrícolas que nos legaram, em particular, a nós portugueses, na culinária, no canto e até no idioma, em que se encontram incorporadas centenas de termos, havendo enriquecido com isso o nosso léxico e marcado definitivamente a nossa cultura, factos que não devemos renegar, nem tampouco menosprezar.
Creio que qualquer pessoa medianamente culta fará, sem relutância, este juízo. Mas isto não nos deve impedir de verificar que, no presente, a cultura islâmica dominante contém aspectos muito desagradáveis, no capítulo do tratamento das mulheres, nas relações do poder civil com o religioso, no Islão em profunda promiscuidade, na postura cultural, sobretudo, de perigoso, nocivo fechamento sobre si mesma, tudo isto produzindo um ambiente que se torna, para nós, europeus do século xxi, de convivência extraordinariamente penosa, se não mesmo impossível.
E o mais dramático é que esta difícil convivência só poderá melhorar a partir da evolução cultural que o Islão, ele mesmo, consiga fazer. O esforço principal terá de vir inevitalvelmente do seu seio, com modesto contributo da nossa parte, admita-mo-lo, com realismo.
No entanto, não haja ilusões, só teremos aqui um papel positivo, se mostrarmos a estes exaltados islamitas firmeza nas nossas convicções, rejeitando o seu actual comportamento irracional. Nada ganharemos, nem com isso os ajudaremos, desculpando ou banalizando as agressões, os insultos e as ameaças que continuamente nos dirigem, mesmo que na sua origem se achem algumas acções de mau gosto, despropositadas ou de ofensa gratuita cometidas por cidadãos europeus pouco prudentes.
Será isto coisa assim tão difícil de entender, já não digo para os islamitas, subjugados pela emoção e pela acintosa manipulação dos seus líderes, mas para os nossos despreocupados concidadãos europeus ?
Aguardemos com a paciência cristamente possível o desenvolvimento da presente crise.
AV_Lisboa, 10 de Fevereiro de 2006
PS : As opiniões aqui expendidas baseiam-se, obviamente, na presunção de que vivemos numa Comunidade que respeita a liberdade de expressão, exercida de forma responsável, sem dúvida, mas exercida sempre, em todas as circunstâncias, pese o humor ou a sensibilidade de qualquer autoridade civil ou religiosa em exercício ou a constituir.